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É noite quando é noite

Você tem certeza de que é noite quando é noite. A atmosfera te grita isso. As luzes da cidade têm vida própria. Quando fechava os olhos, conseguia sentir uma a uma, correndo pelos cantos vazios. Quando flexionava meus dedos para fingir que podia apertá-las, meu sangue ficava repleto de bolinhas pequenas, coloridas e quentes, iluminando minha madrugada individual.
Era noite na primeira vez que eu decidi fugir apenas com um único companheiro de viagem que me beijasse quando nossos hormônios dissessem alô (ficou só na minha cabeça). Era noite quando tomei chuva pela primeira vez, enquanto minha risada brincava com as minhas entrelinhas transbordando complexidade.
Era noite quando descobri que gostava de forró e percebi que era boa dando dois passos pra direita e dois passos pra esquerda. Era noite quando escrevi o primeiro conto da única coletânea que completei em toda a vida. Era noite quando eu percebi o quanto gostava de calças vermelhas de pijama, porque eram tão fofinhas!
— Eu não falei o suficiente? Eu não ouvi o suficiente?
Era noite quando chorei com a história de uma menina adotada que roubava livros. Sabe que era noite quando senti vontade de cursar psicologia? Era noite quando experimentei vodka e percebi que era indescritível ficar sóbria e observar os outros bêbados.
— Ela pediu pra que eu ficasse. Ela pediu pra que eu não...
Era noite quando alinhei meus lápis de cor em uma posição de dar orgulho em qualquer perfeccionista; é, foi quando decidi começar a colorir pra tirar o estresse. Era noite quando fui levantada do chão num abraço quentinho e gostoso, achando que a merda do amor era eterno.
— Por que ela fez o que implorou pra que eu não fizesse?! Egoísta do caralho! Seja lá onde você estiver agora, você é uma filha da puta egoísta do caralho!
Era noite quando os fogos de artifício explodiram no céu, anunciando o início de um novo ano, e eu estava prestes a perder a virgindade quando sussurrei "não", lacrimejando de ódio porque meu corpo era a última bosta que eu queria que alguém visse. Foi aí que percebi que tinha uns problemas?
— Você não chorou até agora, pare de guardar isso. Não é sua culpa. Não é nossa culpa. Ouviu? Não é nossa culpa.
Era noite quando comecei a ter as malditas crises existenciais. Era noite quando tive que começar a abafar o choro no travesseiro porque não queria acordar meu pai e minha mãe no quarto ao lado. Era noite quando me olhei no espelho pela primeira vez depois de longos e expressivos minutos de soluços doloridos e me assustei ao ver o tamanho das minhas olheiras.
— Ela não pensou na gente, mãe? Ela não pensou que nós íamos ficar fodidos? Ela não pensou no que ia acontecer com a porra da família dela?
Era noite quando me abandonaram, um por um, vez por vez, todos aqueles que prometeram ficar comigo. Era noite quando desistiram de mim com um "ok". Era noite quando eu percebi que, droga, as pessoas se incomodavam tanto em me escutar que talvez eu não devesse... Falar.
— Talvez devêssemos ter feito mais.
Era noite quando prostrei os joelhos no chão e implorei: Pai, Pai, Pai, você ainda me ouve? Pai, você ainda me ama? Pai, você ainda tem misericórdia de mim? Salve a minha alma porque já estou no inferno.
— Tinha tanto pra vivermos juntos... Tinha tantos lugares que eu queria mostrar, tantas pessoas, tanta coisa.
Era noite quando...
— O que podemos fazer é lembrar dela enquanto nós respirarmos.
Eu estava tão fodida a ponto de não perceber que a vida precisava que eu tivesse ficado por só mais uma noite?
— Só enquanto eu respirar.


Baseado na música: 
O anjo mais velho - O teatro mágico
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B'shert - Aubade

a u b a d e.

Quando a porta abriu, ela nem se deu ao trabalho de se virar. Já sabia quem era: o único que tinha uma cópia da chave. Não tirou os olhos da partitura e manteve o mesmo ritmo de velocidade inumana nas teclas. O recém chegado não a interrompeu.
Antes de fechar a porta, era normal que o rapaz já soubesse o que fazer, porque habitualmente estavam seminus antes mesmo de conseguirem encontrar a fechadura.
É claro que não era o caso dessa vez.
Observou o apartamento. Estava, no mínimo, fora do normal. Não era a primeira vez que a namorada (poderia chamá-la assim?) tinha surtos, mas nunca conseguiu se acostumar de verdade. Apesar de conseguir ver a cozinha limpa, a sala estava de cabeça para baixo: batatas fritas esquecidas, um pote de brigadeiro em cima de um (dos muitos) pratos de comida pela metade, algo que aparentava ser uma massa de bolo semi-acabada, almofadas fora do lugar, partituras e papéis espalhados pelo chão (muitos deles rabiscados), roupas jogadas de qualquer jeito, livros virados de ponta cabeça.
E tinha a razão de sua visita sentada no banco do piano, apenas com o sutiã preto que ele já conhecia, shorts da mesma cor e os cabelos molhados e ondulados no ombro. Ele sentou no braço do sofá (um dos únicos espaços vazios) e esperou que a música terminasse. Reconheceu o som: o terceiro movimento de Sonata ao Luar. Só conhecia porque era o que ela tocava quando estava frustrada ou perturbada. Era uma peça que exigia toques fortes e agressivos, além de um foco fora do comum devido ao seu nível de dificuldade.
Observou as costas dela se contraindo conforme se movia. Nem tentou prestar atenção nos seus dedos, pois se moviam rápido demais para que acompanhasse.
Não demorou muito para que as notas graves estremecessem o ambiente (sinal de que a música já estava sendo tocada bem antes da sua chegada) e a melodia fosse finalizada. Por alguns minutos, a moça apenas ficou imóvel. Quando, enfim, tomou coragem, levantou sem encará-lo e pegou um copo de bebida que tinha deixado em cima do piano.
— A pior coisa que eu fiz foi te dar essa chave — disse, ainda de costas.
— Talvez tenha sido.
Preferindo não responder, apenas bebeu e finalmente se virou na direção dele. Pelas roupas informais, julgou que o recém chegado não tinha vindo da empresa.
— Você está bem?
— Eu pareço estar bem? — Estava ácida. Se tinha ido para o seu próprio apartamento, era porque não queria vê-lo e isso era claro.
— Eu não estava vindo para cá, mas não queria te deixar sozinha.
— Não lembro de ter dito que queria sua companhia.
— Você pode, por favor, parar de me atacar? Isso não vai resolver seus problemas. — Se levantou.
— A não ser que você seja o maior dos meus problemas — retrucou, tentando não alterar a voz ou a expressão.
— Eu tento não ser!
— Você não tenta o suficiente! — gritou ela, apertando o copo. — Eu só consigo ficar cansada o tempo todo. Por que ainda insiste nisso?
— E por que é tão difícil achar que eu me importo?! Você sabe que, acima de tudo, sou seu amigo. E tudo o que construímos juntos... É claro que importa!
— Não consigo acreditar em você. — Foi uma resposta dura e direta.
Aquilo doeu. Mais nele do que nela.
— Faz uma semana que você não volta pra casa.
— Aqui é minha casa.
Ele acatou a resposta e permaneceu em silêncio, enquanto a moça bebeu mais um pouco, sabendo que, se não se ocupasse, iria chorar.
O rapaz começou a andar. Ela queria gritar: "Não chegue perto de mim", mas a frase ficou presa. Ele, porém, apenas pegou o copo da sua mão e cheirou, franzindo o nariz.
— O que foi que você colocou aqui? É muito forte pra uma pessoa que precisa estar sóbria e lidar com crianças autistas no consultório de manhã.
O copo foi puxado de volta.
— Não pedi nenhum conselho seu.
Apesar disso, deixou a bebida em cima do piano novamente.
Queria tocá-lo e era recíproco, mas nenhum dos dois faria isso. Escutaram a respiração um do outro por alguns segundos. Ele a olhava, mas ela não conseguiu fazer o mesmo e permaneceu de cabeça baixa, com os braços cruzados.
Por fim, o amigo (ou namorado?) suspirou e deu alguns passos para trás. Ela mordeu os lábios com força para segurar as lágrimas. Sabia que ele deveria ir embora, mas não conseguia ver.
— Você não tem mais nada pra fazer aqui — murmurou por fim e, demonstrando toda a sua fraqueza, andou rapidamente até o quarto e fechou a porta, deixando-o sozinho no outro cômodo.
Contrariando as expectativas, ele não saiu. Apenas encostou-se na parede mais próxima e se sentou no chão, massageando a nuca.
Encarou o sofá. Sabia que não era atrativo tirar toda a bagunça para deitar, mas parecia que era sua melhor opção. Não se importava com as expectativas dela do que deveria ou não fazer.
Estaria lá quando ela acordasse.
Mais sobre o projeto aqui.
Aubade: Canção de amor matinal (em oposição à serenata, que é noturna), canção ou poema sobre amantes que se separam ao amanhecer. Canção instrumental que evoca a aurora.
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Milk-shakes ruins não valem uma foto

— Não sei explicar direito, é como se o dia falasse com você. Entende? — Angela torceu os dedos das mãos.
O rapaz franziu a testa e riu, mexendo o milk-shake de limão com o canudo. Será que o dele estava bom? Porque o dela estava péssimo.
— Não sei se entendo, na verdade — respondeu, colocando o canudo na boca. — O dia... Fala?
— É... Tipo isso, não é literalmente falar... — Angela balançou a cabeça, comprimindo os lábios. — Deixa pra lá.
— Certo.
"Resposta errada", pensou a moça. "Erradíssima.". Mexeu o próprio milk-shake com velocidade. A foto tinha ficado muito bonita no status, mas o gosto não estava valendo a pena.
— O que você faz?
"Que pergunta babaca", grasnou ela, internamente.
— Faculdade. — Ela sorriu. — Nas horas vagas. 
Ele uniu as sobrancelhas.
— Era uma piada — completou Angela.
— Ah...
O celular da moça começou a vibrar na mesa. "Sorry not sorry" da Demi Lovato soou alto na sorveteria, fazendo alguns olhares se voltarem para suas costas. 
— Um segundo — disse, levantando rapidamente para atender a ligação. — Alô?
— Tudo certo por aí? — A voz rouca de seu melhor amigo a obrigou a respirar com alívio. Ela se afastou mais alguns passos para ter certeza que o rapaz que havia ficado na mesa não a ouviria.
— Tá uma bosta, Jorge — respondeu. — Ele é chato e não entendeu minha filosofia dos dias que falam.
Do outro lado da linha, Angela ouviu o amigo bufando. Uma clara tentativa de segurar a risada.
— Te pego em um minuto. Espere do lado de fora — disse ele.
— Ok. Obrigada. Amo você.
— Sei disso. 
Angela sorriu e encerrou a ligação, voltando a passos lentos para a mesa. Apoiou as mãos na cadeira que anteriormente estava sentada, antes de dizer:
— Aconteceu um imprevisto. Meu primo passou mal. — Angela fez uma expressão de "trágico". — Preciso ir vê-lo. Mas foi legal, me chama no WhatsApp pra marcarmos de novo.
— Claro... — O garoto expressou decepção. — Melhoras ao seu primo. — Ele fez menção de se levantar para se despedir com um abraço ou um beijo no rosto, mas Angela andou rapidamente para trás, acenando. 
A porta da sorveteria nunca pareceu tão distante, e quando cruzou a saída, o ar puro nunca lhe pareceu tão agradável.
Em menos de um minuto, o Corolla azul de Jorge estava estacionado a sua frente. Angela sorriu, entrando no veículo. 
— Olá, gatinha — brincou ele, encarando a sua mais nova companhia. 
Angela apenas balançou a cabeça e riu. Jorge arrancou com o carro.
— Então é isso, nenhum cara me entende, todos eles são extremamente superficiais e eu desisto de me relacionar com seres humanos.
O rapaz no volante riu. Alto.
— Comprei uma barra de chocolate da Nestlé pra você, tá no guarda-volumes — disse. — E é claro que você vai se relacionar.
A moça buscou a barra de chocolate como uma exploradora faminta. Quando alcançou a embalagem vermelha, desbloqueou o celular para tirar uma foto. O doce virou um storie no Instagram. Milk-shake e chocolate no mesmo dia, daqui a pouco as pessoas iam comentar que ia ficar diabética. 
— Estou perdendo as esperanças — murmurou, mordendo um pedaço do tablete.
— Qualquer coisa, você vive numa casa isolada da sociedade e alcança a iluminação. — O moço piscou.
— Beleza.
Ele percebeu tarde demais que talvez tivesse falado a coisa errada. Deu um pigarro.
— Você tem onde dormir hoje?
Angela negou com a cabeça. Tinha onde dormir, mas só se quisesse ser espancada pelo irmão drogado.
— Minha casa é a sua casa.
Ela sabia que aquilo não era verdade, mas as palavras eram extremamente gentis, então deu um sorriso fraco ao amigo. 
— Seus pais estão lá? — perguntou ela. 
— Só de noite. Mas você sabe que eles te amam.
— Não quero ser um incômodo pra ninguém. — A voz dela estava começando a soar chorosa.
— Você nunca vai ser um incômodo pra mim — refutou Jorge com firmeza, os olhos fixos no caminho que estava percorrendo.
Angela assentiu, meio fungando.
O resto do trajeto foi feito em silêncio. Angela quase não sentiu que estava em movimento, e gostaria de ter continuado assim, mas a entrada da casa do amigo logo se tornou visível aos seus olhos. 
Enquanto ele estacionava o veículo em frente ao portão, Angela sentiu o dia mudando novamente, e perguntou-se se estava tentando falar com ela de novo.
O casal de amigos desceu do Corolla. Jorge achou as chaves em algum lugar perdido do bolso. Assim que a porta foi destrancada, Angela adentrou o local como se fosse seu — talvez porque estava começando a se tornar seu mesmo, mais do que ela queria. 
A primeira visão, quando entrava, era a de um enorme e confortável sofá de couro. Angela já tinha se acostumado com as paredes verde-musgo (cor que, estranhamente, gostava) e o piso de madeira fazendo barulho conforme pisava nele. Ela se jogou no sofá, como de praxe. Jorge se jogou ao lado dela. Ficaram olhando para o teto por alguns instantes. Angela puxou o celular e tirou uma foto do seu All Star surrado em cima do piso. 
No Tumblr, não importava se estava surrado. Ficava até cult.
— Salvei mais uns vestidos de casamento na minha pasta do Pinterest — comentou ela. 
— Essa pasta tá ficando bem grande, né? 
— É, mas já tem mais de 700 seguidores. As pessoas parecem gostar de imaginar casamentos.
O celular apitou. Curtida na foto que havia tirado com Jorge na semana passada. 
"Lindos! Quando vão assumir o namoro?", era o comentário de uma de suas tias.
Angela riu sozinha e olhou para o amigo, que retribuiu a encarada.
— O quê? — Ele riu também. 
Ela levantou o celular e fez a câmera capturar o sorriso espontâneo do amigo antes que ele se desse conta da situação. 
— Angela! — protestou o rapaz.
Uma rápida edição nos cantos, um filtro bom, um aumento leve na iluminação e... Pronto. "De janeiro a janeiro, até o mundo acabar". Melhor legenda. Checou se a namorada do amigo estava bloqueada na visualização de status do WhatsApp. Estava.
— Sua namoradinha não vai encrencar com isso — falou, ironicamente. 
Jorge não respondeu. Na verdade, foi mais fácil para ele segurar o queixo de Angela entre os dedos e aproximar seus rostos. 
— Ela só encrenca porque você ainda deixa — murmurou, antes de beijá-la. 
"Droga", pensou.
Enquanto a língua de Jorge na sua lhe causava algumas cambalhotas animadas no estômago (e mais embaixo), Angela teve uma fagulha de pensamento, bem rápida, mas insistente: as relações eram líquidas ultimamente, e céus, tinha coisa mais clichê que usar "relação líquida" na sociedade atual? Tanto faz. Ela amava o amigo, isso era um fato, mas não o suficiente pra casar e ter filhos. Talvez porque, olhando suas pastas no Pinterest e casais fofos no Facebook, estivesse procurando algo naquele naipe. Só precisava de um poeta, um sonhador, um romântico à moda antiga, um fotógrafo.
Um príncipe encantado, talvez? Eles existiam, não é? Existiam e estavam ali, esperando por uma oportunidade de aparecer. 
Os encontros fracassados eram só passageiros, sabia disso.
Porém, não sabia muito bem o que se passava na cabeça de Jorge para beijá-la enquanto a namorada não estava ali. Mas não se importava muito. 
O sexo era bom, afinal. 
E as roupas jogadas no chão rendiam boas fotos pro Instagram.
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Para ficarem acesas


— Olhe todas essas casas amontoadas. É como se precisassem umas das outras para ficarem acesas. Quando olho a minha casa, ela está sozinha. Só ilumina a si mesma.
— Ainda bem que te tirei de lá, não é? — James abraçou a moça, rindo.
Suri franziu os lábios.
— É claro, Jay. É claro.
— Você está linda, minha futura rainha.
— Eu ainda nem sou princesa. — Ela sorriu fracamente, desvencilhando-se dos braços dele e afastando-se da sacada. As luzes das casas ficaram para trás.
— Ainda. — O príncipe beijou a mão da garota. — Preciso ir. Já vamos receber nossos convidados. Desça para o salão assim que terminar.
Suri observou a saída de James do quarto, deixando-se cair na primeira poltrona que viu. Maldito vestido apertado. O que adiantava ser tão bonito se ela vomitasse nele?
“Uma princesa precisa lidar com essas coisas, certo?", ela pensou enquanto ajeitava a tiara no coque trançado que haviam feito nela. O vestido parecia intacto. Lilás, cheio de camadas e brilhos suaves, era perfeito. Realmente não tinha do que reclamar. A renda transparente cobria seus braços mestiços. James gostava de mangas longas.
Quando fitou o espelho pela última vez, só conseguia ver a feição assustada de uma novata tentando parecer segura com aquele monte de joias brilhantes e maquiagem.
“Bem”, ela suspirou, “vai melhorar”.
Cheia de uma falsa coragem, deixou o quarto e começou a caminhar para a escada principal. Nenhum criado à vista. Respirou fundo. Lá de cima, apoiando a mão no corrimão, viu que o salão estava ficando cheio e o príncipe conversava em uma rodinha. Suri conhecia uma ou duas pessoas, talvez… Não, céus, a quem ela queria enganar? Não fazia ideia de quem eram aqueles nobres engomados.
Quando começou a descer as escadas, o salto fez barulho e James virou-se para olhá-la.
“Ah, não, James, você não vai me anunciar, não vai me anunciar, não vai…”
— Senhores e senhoritas, apresento-lhes minha deslumbrante noiva! — Ele exclamou o mais alto que conseguiu e a maior parte dos convidados começou a encará-la e bater palmas.
“Constrangedor”, a moça reclamou para si própria, mas sorriu por fora. “Será que vou me acostumar com isso?”. James foi até a escada e a esperou descer para segurar sua mão e conduzi-la pelo espaço.
Um passo ali e outro aqui, ele fez com que ela cumprimentasse todas as pessoas presentes. Todas, no sentido mais amplo da palavra. Suas bochechas já doíam nos minutos iniciais. Quer dizer, alguns eram, de fato, simpáticos, mas ela percebeu todos os olhares de desprezo também existentes. James havia avisado sobre isso. Era camponesa, mestiça, jovem e inexperiente, afinal.
Ele não usou essas palavras, porém ela era esperta.
— Príncipe de Lylus, meu grande amigo! — exclamou James para o convidado seguinte.
“Lylus?”. Ela não se lembrava daquele reino.
— Ora, achei que não fosse chegar aqui, James. — A resposta veio acompanhada de um sorriso.
Um aperto de mãos se seguiu.
— Minha noiva, Suri.
Os olhos do novo príncipe caíram sobre a moça. Olhos astutos e sagazes, ela reparou. Como…
— Todos já sabem, você anunciou com muita ênfase. — Como corujas piando toda a sua sabedoria aos desavisados? Ele sorriu e pegou a mão dela, beijando-a por mais segundos do que o necessário. — Estou encantado em vê-la de perto.
— Alteza. — Ela fez uma reverência, percebendo que estava atrasada no gesto. — Prazer em conhecê-lo.
— Se quiser, pode me tratar por Lewis — sugeriu com um sorrisinho.
— Lewis — aderiu ela.
— Fiquem um pouco por aqui — convidou ele. — Estava me sentindo solitário.
— Com tantas pessoas? É fácil arranjar companhia. — James piscou, malicioso. Suri quase (quase!) revirou os olhos.
— É possível ter vários indivíduos ao seu redor e mesmo assim não ter companhia — respondeu, sorrindo. Certo, talvez aquilo fosse uma surpresa para Suri, que franziu as sobrancelhas. — Não é mesmo, Suri?
Ela percebeu que estava sendo provocada, só não sabia como e por qual motivo.
— Acredito que sim, Alteza. — Resolveu se manter formal e desviou os olhos.
Lewis franziu a testa e resolveu tirar a atenção de cima da futura rainha. Em poucos minutos, ele e James estavam engajados em alguma conversa sobre a situação dos países. Suri sabia que deveria prestar atenção, afinal, iria ter que lidar com essas questões muito de perto. No entanto, seus olhos fugiam a todo instante para fora do salão. A noite estava linda. Ela sentia isso (ela sentia a noite) mesmo com os corpos grandes dos guardas bloqueando sua visão.
Acabou suspirando, com vontade de escrever algo sobre aquele cenário.
Nesses momentos, concluía que a vida da realeza não era para ela. Mas o que poderia fazer? Não podia decepcionar sua família. Ou James, que parecia tão apaixonado. Ou o rei e a rainha, que acolheram-a como se fosse uma filha (apesar de nem estarem presentes na festa por causa de uma viagem de última hora. Tudo bem, o que importava era a intenção, certo?).
Finalmente, os músicos começaram a tocar uma melodia de valsa. Isso tirou a atenção dos príncipes da conversa, tendo o mesmo efeito nos pensamentos da moça.
— Acredito que você queira essa dança com sua noiva — Lewis comentou.
— Não posso desperdiçar esses momentos, não é mesmo? — James sorriu. — Outra hora continuamos a conversa.
O rapaz apenas assentiu. Suri finalmente teve coragem de reparar com mais atenção, percebendo que, mesmo com o balanço da cabeça, os fios castanhos dele continuaram no lugar. Poderia ter reparado mais, porém James a puxou para o centro do salão. Ele era maníaco por atenção e Suri não tinha se acostumado totalmente.
No entanto, dançar era um de seus talentos naturais, então ela aproveitou o momento mais do que imaginou. Os giros, as luzes, as mãos de James em seu corpo, conduzindo-a… Eram sensações que apreciava. Dançar, mesmo que formalmente, lhe proporcionava um breve sentimento de… Liberdade. Completa e total liberdade.
Ao findar a música, fez a reverência e recebeu os aplausos com educação. Agora, iriam ter que voltar a conversar com os convidados, porque a sociabilidade era importante, de acordo com James.
Ela cumpriria seu dever, mas precisava respirar. Respirar um ar que não estivesse contaminado por nobres. Não era um crime querer aproveitar o sentimento que a dança lhe tinha trazido, certo?
Cochichou no ouvido do príncipe que voltava em alguns instantes, sem dar tempo para ver sua reação. Saiu pela porta principal. Nenhum guarda questionou. Nem ninguém, aliás, mas ela sabia que todos tinham visto. E se estavam comentando?
“Quem se importa?”, o seu lado rebelde protestou.
Suri conhecia o castelo há tempos, especificamente de quando era criança. Brincava com James desde que se conhecia por gente. Ele vivia escapando para os territórios de camponeses, vez ou outra levando algum dos colegas para o castelo. Raramente descobriam. Nesse cenário, Suri sempre foi uma das melhores amigas de James e eles cresceram juntos.
Ao contrário do esperado, não eram apaixonados. Inclusive, contavam histórias de conquistas amorosas um para o outro: Suri com seus camponeses atrevidos e James com suas princesas envergonhadas. O ponto em comum entre essas histórias era justamente o fracasso em toda e qualquer relação que possuíam. Eles riam de suas frustrações.
Se dependesse de Suri, provavelmente teriam ficado assim. Entretanto, quando James roubou-lhe um beijo numa tarde repleta de cansaços existenciais, a moça lembrou de quem ele era: um príncipe. Não só um príncipe: seu melhor amigo. Talvez desse certo, ela cogitou. Talvez amá-lo como namorado não fosse difícil.
De fato, não foi. Era um bom rapaz. Um ótimo rapaz. Fazia jus à imagem de príncipe que o mundo possuía. Juntos, construíram um amor calmo e controlado. Submisso, até. Quando ele sugeriu o noivado, era previsível. Ela sempre soube que iria aceitar casar com ele, mesmo que não fosse o amor arrebatador com o qual sonhou a sua vida inteira.
E ali estava: era sua festa e ainda estava pequena. O casamento seria muito mais grandioso. Ela gostava disso, mas não tanto quanto deveria gostar. Às vezes tinha aqueles lapsos em que precisava ficar sozinha ou apenas sair do castelo.
Infelizmente, acontecia nos momentos mais inapropriados.
Suri tinha o seu próprio lugar. Nomeou como "seu" quando James pareceu se esquecer dele. Atrás do castelo, montaram dois balanços. Ali mesmo também tinham plantado suas primeiras sementes de morango e enterrado vestígios de "lágrima de duende", como James havia dito na época. Passaram no local a infância e a adolescência, até que o relacionamento começou e Suri passou a ir só.
Ela não pensou em outro lugar quando saiu do salão. Foi difícil encaixar o vestido no balanço, mas não impossível. Seu único medo era que as cordas rompessem. Enroscar o tecido na madeira não seria fatal, já que tinha costureiras milagrosas a sua disposição. Suspirou.
— Eu entendo que o balanço seja mais interessante que uma festa de noivado, mas veja, é o seu noivado, princesa.
A moça não precisou levantar os olhos para saber quem era, nem se assustou com a presença de Lewis. Apenas ficou surpresa pelo fato de ele ter encontrado onde estava e, principalmente, por ter vindo atrás dela.
— Não sou uma princesa — Suri respondeu, gesticulando o banco a sua frente para que ele sentasse, coisa que o rapaz não demorou a fazer. — E pelo visto você também precisava de um pouco de ar.
— Eu sempre preciso de ar. — Ele sorriu. O sorriso dele era largo, reparou. Os olhos cor de mel combinavam com perfeição.
— Eu também. — Viu-se confessando sem querer.
— A realeza já está pesando em seus ombros?
— Previsível, não é? Não sou uma exceção dos efeitos colaterais. — Deu um sorriso de canto.
— Entendo o que quer dizer. Você está em processo de se acostumar com isso. — Tentou tranquilizá-la.
— Podemos dizer que sim — Suri concordou. — É estranho usar esses saltos quando eu passei a vida correndo descalça por aí.
Lewis riu.
— Perdão, nem sei o motivo de estar te contando esse tipo de coisa — desculpou-se ela.
— Por favor, continue, é interessante entrar um pouco em seus pensamentos.
Suri sorriu abertamente dessa vez.
— Queria que o resto do mundo pensasse em ter esse interesse por mim.
O príncipe ficou em silêncio por alguns instantes.
— Por que você se preocupa?
Suri fitou o nada.
— Desde sempre eu tive que me... Ajustar aos padrões de outras pessoas — refletiu ela, lembrando-se das relações amorosas  fracassadas e da família. — Não conheci outra forma de ser interessante. Precisei ser.
— Por quê? — Lewis questionou, deixando a moça confusa.
— Tenho medo de me sentir sozinha. Você sabe do que estou falando, também é um ser humano. — Tampou a boca com as mãos, percebendo que estava falando de forma muito íntima.
— Mas nunca tive que ser outra pessoa. — Ele pareceu não ligar.
— Você é corajoso. — Ela o encarou. — Pra um príncipe.
— Isso não é coragem, princesa. — O rapaz sorriu. — Talvez seja sorte.
— Talvez.
Os dois se encararam por longos minutos.
— Acredito que você precise entrar — lembrou ele, pronunciando as palavras com cuidado.
— Sim. — Suri hesitou, mas começou a se agarrar nas cordas do balanço para conseguir levantar. Lewis riu sonoramente, também levantando-se para ajudá-la.
— Sentar aqui com esse vestido não foi sua melhor ideia — disse ele, envolvendo a cintura dela e puxando-a para cima.
Suri sentiu-se tão ou mais confortável com aquela proximidade do que se sentia com James. O rapaz tinha um aroma cítrico que a distraiu. Entretanto não podia esquecer quem era seu noivo, afinal.
— Não, não foi. — A moça riu, afastando-se do balanço e do rapaz. Afagou os braços, coisa que fazia quando estava nervosa ou ansiosa.
— Você quer que eu te acompanhe?
— Eu... — Ao invés de responder, respirou fundo. Não queria voltar, era isso.
Então preferiu não falar. Deu alguns passos para a frente, encarando o cenário. Lewis prostrou-se ao seu lado, sem dizer uma palavra sequer.
A vista era a mesma que tinha em seu quarto, na sacada. A mesma que tinha mostrado para James mais cedo. A mesma que olhava todos os dias, com saudades da vida antes do castelo. Ali, parecia ainda mais palpável. As luzes dos lares distantes; o verde das aldeias, escurecido pela noite; os grilos fazendo barulho; vidas que estavam bem, bem distantes de lá.
— Vê todas essas casas amontoadas? — soltou. — É como se precisassem umas das outras para ficarem acesas.
— Sim. — Ele esperou, sentindo que havia mais.
— Aquela é a minha antiga casa. — Ela apontou para um brilho fraco e distante. — Quando olho, vejo que ela está sozinha, isolada do restante. Só ilumina a si mesma.
— Mesmo assim ela foi suficiente para você, não é? Foi seu lar, não precisando necessariamente estar junto de outras casas.
Suri fitou Lewis, surpresa. Ele a fitou de volta.
— Nunca te falaram coisas assim — concluiu ele. Ela balançou a cabeça. — Eu também nunca conheci uma princesa que não fosse vazia.
Suri apenas sorriu e abaixou a cabeça. A respiração acelerou. Não queria encará-lo novamente: o que tinha visto em seus olhos quando o fitou era mais do que ela conseguia lidar.
— Acho… Acho que preciso ir na frente — falou a moça com ar culpado.
Ambos não disseram mais nada. Ela apenas caminhou rapidamente para longe, segurando o vestido lilás e sentindo-se estranhamente quente e viva.
— Suri! — A moça ouviu um grito atrás de si. Fechou os olhos, sentindo que, se virasse, não conseguiria voltar mais para o salão.
Então virou.
Mesmo de longe, conseguiu perceber que o príncipe estava torcendo as mãos. O uniforme azul e preto de Lylus se colava tão bem ao corpo dele, como se ressaltasse o lugar de Lewis no mundo, e Suri sentia inveja disso.
Com alguma lentidão, o rapaz se encaminhou para a frente. Inconscientemente, Suri também começou a ir na direção dele. Logo, estavam perto novamente, ambos com pura expectativa evidenciada em suas expressões.
— Sei que vai parecer estranho — começou ele. — Mas, talvez, quem sabe, você gostaria de…
— Sim? — perguntou ela, esquadrinhando o rosto dele com ansiedade.
Em resposta, ele estendeu a mão.
— Dançar comigo?
Não era exatamente aquilo que Suri esperava ouvir.
— Onde? — Foi a única coisa que conseguiu dizer.
— Aqui. Agora. — Lewis parecia nervoso.
— E por que faríamos isso?
— Você só vai saber se dançarmos. — Sorriu.
— A minha festa de noivado está acontecendo nesse instante. — Ela ressaltou a palavra “noivado”.
— Eu sei.
— Você sabe — repetiu ela, ganhando um franzir de lábios como resposta.
Sim, ele sabia, e tinha dado a entender que estaria disposto a ignorar isso se ela estivesse também.
Contudo, os convidados sentiriam a falta dela. Não apenas a falta dela, mas a falta dos dois. Quanto tempo tinham até um guarda aparecer e arrastá-la de volta? E se contassem a James? E se, então, James surtasse com a informação? E se o seu noivado acabasse? E se decepcionasse sua família? E se o rei e a rainha decidissem castigá-la? E se…
Suri pousou um dos braços no ombro de Lewis e entrelaçou a mão vaga na dele. O rapaz, por consequência, enlaçou a cintura dela com o braço livre e firmou o aperto entre suas mãos.
— Não temos música — sussurrou Suri, tendo plena consciência de que ele ouvia as batidas do coração dela.
— Imagine uma — respondeu Lewis.
E ela imaginou.
Ouvia os grilos ao redor, e tinha uma vaga noção das luzes distantes iluminando-os, como se estivessem em um salão particular. Ele rodopiou-a três vezes e a puxou de encontro ao peito. O vestido arrastava no chão conforme ela se movia, e as pernas de Lewis esbarravam no tecido quando ele ia para a frente. Os passos eram firmes, precisos e harmônicos. A verdade era que Suri achava que conhecia a liberdade, mas sua convicção se provou errada a partir do momento em que sentiu seu corpo movendo em sincronia com o de Lewis; como se o universo, as divindades e o destino tivessem conspirado para aquele instante, aquele peculiar instante em que ela respirou libertação.
Quando rodopiaram juntos mais uma vez, ele inclinou-se para beijá-la. Cores explodiram nos olhos de Suri. Enquanto acariciava a nuca de Lewis, a existência teve alguma lógica. A terra estremeceu em certeza; ou foi o seu corpo, ela não tinha mais certeza. Então aquilo era viver? Aquilo que borbulhava e corria em suas veias era vida?
Os lábios se separaram, mas a sensação continuava lá. Lewis abriu a boca para se desculpar, mas Suri balançou a cabeça antes que ele pudesse verbalizar aquilo. Ela sabia que não tinha sido um erro, porém isso não mudava o fato de que podiam ser mortos pela coisa certa, de qualquer forma. Desvencilharam-se em silêncio, com uma intensa confusão em suas mentes. E agora?
Ainda sem dizer nada, voltaram a encarar as luzes. Como se despediriam? Como encerrariam aquilo? Era o que Suri contaria aos seus filhos com James quando estivesse à beira da morte? Pediria para que contatassem o amor da sua vida e lhe dissessem o quanto se arrependia de tê-lo deixado ir naquela noite?
— Às quatro — falou Lewis, virando-se para ela. — A festa vai ter acabado, provavelmente vocês vão ter ido para os seus aposentos antes. Conheço as festas daqui, não duram muito, mesmo que sejam noivados.
Suri teve que processar a informação por longos segundos antes de entender o que o rapaz estava dizendo.
— Podemos nos encontrar aqui. Os criados que vieram comigo são leais e vão ajudar. — Lewis suspirou, aproximando-se mais e pegando as mãos da moça. — Não tenho o direito de te pedir isso, mas sei que sentiu o mesmo que eu. Não quero ignorar isso e me arrepender por não ter tido coragem o suficiente. Se nós somos duas casas amontoadas, eu não quero o isolamento. Eu quero você acendendo minhas luzes.
Assim que ele despejou tudo, Suri arfou em descrença. Seu estômago embrulhou e sua cabeça girou com a adrenalina. Sabia que, se respondesse qualquer coisa, seria um ato insano que faria tudo o que conhecia se transformar em pó.
Então respondeu.
— Às quatro.
Lewis sorriu largamente e ela deu alguns passos para trás, devagar, antes de se reorientar e correr de volta para o castelo, ainda com o horário reverberando de milésimo em milésimo na sua cabeça.
Às quatro.

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