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É noite quando é noite

Você tem certeza de que é noite quando é noite. A atmosfera te grita isso. As luzes da cidade têm vida própria. Quando fechava os olhos, conseguia sentir uma a uma, correndo pelos cantos vazios. Quando flexionava meus dedos para fingir que podia apertá-las, meu sangue ficava repleto de bolinhas pequenas, coloridas e quentes, iluminando minha madrugada individual.
Era noite na primeira vez que eu decidi fugir apenas com um único companheiro de viagem que me beijasse quando nossos hormônios dissessem alô (ficou só na minha cabeça). Era noite quando tomei chuva pela primeira vez, enquanto minha risada brincava com as minhas entrelinhas transbordando complexidade.
Era noite quando descobri que gostava de forró e percebi que era boa dando dois passos pra direita e dois passos pra esquerda. Era noite quando escrevi o primeiro conto da única coletânea que completei em toda a vida. Era noite quando eu percebi o quanto gostava de calças vermelhas de pijama, porque eram tão fofinhas!
— Eu não falei o suficiente? Eu não ouvi o suficiente?
Era noite quando chorei com a história de uma menina adotada que roubava livros. Sabe que era noite quando senti vontade de cursar psicologia? Era noite quando experimentei vodka e percebi que era indescritível ficar sóbria e observar os outros bêbados.
— Ela pediu pra que eu ficasse. Ela pediu pra que eu não...
Era noite quando alinhei meus lápis de cor em uma posição de dar orgulho em qualquer perfeccionista; é, foi quando decidi começar a colorir pra tirar o estresse. Era noite quando fui levantada do chão num abraço quentinho e gostoso, achando que a merda do amor era eterno.
— Por que ela fez o que implorou pra que eu não fizesse?! Egoísta do caralho! Seja lá onde você estiver agora, você é uma filha da puta egoísta do caralho!
Era noite quando os fogos de artifício explodiram no céu, anunciando o início de um novo ano, e eu estava prestes a perder a virgindade quando sussurrei "não", lacrimejando de ódio porque meu corpo era a última bosta que eu queria que alguém visse. Foi aí que percebi que tinha uns problemas?
— Você não chorou até agora, pare de guardar isso. Não é sua culpa. Não é nossa culpa. Ouviu? Não é nossa culpa.
Era noite quando comecei a ter as malditas crises existenciais. Era noite quando tive que começar a abafar o choro no travesseiro porque não queria acordar meu pai e minha mãe no quarto ao lado. Era noite quando me olhei no espelho pela primeira vez depois de longos e expressivos minutos de soluços doloridos e me assustei ao ver o tamanho das minhas olheiras.
— Ela não pensou na gente, mãe? Ela não pensou que nós íamos ficar fodidos? Ela não pensou no que ia acontecer com a porra da família dela?
Era noite quando me abandonaram, um por um, vez por vez, todos aqueles que prometeram ficar comigo. Era noite quando desistiram de mim com um "ok". Era noite quando eu percebi que, droga, as pessoas se incomodavam tanto em me escutar que talvez eu não devesse... Falar.
— Talvez devêssemos ter feito mais.
Era noite quando prostrei os joelhos no chão e implorei: Pai, Pai, Pai, você ainda me ouve? Pai, você ainda me ama? Pai, você ainda tem misericórdia de mim? Salve a minha alma porque já estou no inferno.
— Tinha tanto pra vivermos juntos... Tinha tantos lugares que eu queria mostrar, tantas pessoas, tanta coisa.
Era noite quando...
— O que podemos fazer é lembrar dela enquanto nós respirarmos.
Eu estava tão fodida a ponto de não perceber que a vida precisava que eu tivesse ficado por só mais uma noite?
— Só enquanto eu respirar.


Baseado na música: 
O anjo mais velho - O teatro mágico

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