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B'shert - Aubade

a u b a d e.

Quando a porta abriu, ela nem se deu ao trabalho de se virar. Já sabia quem era: o único que tinha uma cópia da chave. Não tirou os olhos da partitura e manteve o mesmo ritmo de velocidade inumana nas teclas. O recém chegado não a interrompeu.
Antes de fechar a porta, era normal que o rapaz já soubesse o que fazer, porque habitualmente estavam seminus antes mesmo de conseguirem encontrar a fechadura.
É claro que não era o caso dessa vez.
Observou o apartamento. Estava, no mínimo, fora do normal. Não era a primeira vez que a namorada (poderia chamá-la assim?) tinha surtos, mas nunca conseguiu se acostumar de verdade. Apesar de conseguir ver a cozinha limpa, a sala estava de cabeça para baixo: batatas fritas esquecidas, um pote de brigadeiro em cima de um (dos muitos) pratos de comida pela metade, algo que aparentava ser uma massa de bolo semi-acabada, almofadas fora do lugar, partituras e papéis espalhados pelo chão (muitos deles rabiscados), roupas jogadas de qualquer jeito, livros virados de ponta cabeça.
E tinha a razão de sua visita sentada no banco do piano, apenas com o sutiã preto que ele já conhecia, shorts da mesma cor e os cabelos molhados e ondulados no ombro. Ele sentou no braço do sofá (um dos únicos espaços vazios) e esperou que a música terminasse. Reconheceu o som: o terceiro movimento de Sonata ao Luar. Só conhecia porque era o que ela tocava quando estava frustrada ou perturbada. Era uma peça que exigia toques fortes e agressivos, além de um foco fora do comum devido ao seu nível de dificuldade.
Observou as costas dela se contraindo conforme se movia. Nem tentou prestar atenção nos seus dedos, pois se moviam rápido demais para que acompanhasse.
Não demorou muito para que as notas graves estremecessem o ambiente (sinal de que a música já estava sendo tocada bem antes da sua chegada) e a melodia fosse finalizada. Por alguns minutos, a moça apenas ficou imóvel. Quando, enfim, tomou coragem, levantou sem encará-lo e pegou um copo de bebida que tinha deixado em cima do piano.
— A pior coisa que eu fiz foi te dar essa chave — disse, ainda de costas.
— Talvez tenha sido.
Preferindo não responder, apenas bebeu e finalmente se virou na direção dele. Pelas roupas informais, julgou que o recém chegado não tinha vindo da empresa.
— Você está bem?
— Eu pareço estar bem? — Estava ácida. Se tinha ido para o seu próprio apartamento, era porque não queria vê-lo e isso era claro.
— Eu não estava vindo para cá, mas não queria te deixar sozinha.
— Não lembro de ter dito que queria sua companhia.
— Você pode, por favor, parar de me atacar? Isso não vai resolver seus problemas. — Se levantou.
— A não ser que você seja o maior dos meus problemas — retrucou, tentando não alterar a voz ou a expressão.
— Eu tento não ser!
— Você não tenta o suficiente! — gritou ela, apertando o copo. — Eu só consigo ficar cansada o tempo todo. Por que ainda insiste nisso?
— E por que é tão difícil achar que eu me importo?! Você sabe que, acima de tudo, sou seu amigo. E tudo o que construímos juntos... É claro que importa!
— Não consigo acreditar em você. — Foi uma resposta dura e direta.
Aquilo doeu. Mais nele do que nela.
— Faz uma semana que você não volta pra casa.
— Aqui é minha casa.
Ele acatou a resposta e permaneceu em silêncio, enquanto a moça bebeu mais um pouco, sabendo que, se não se ocupasse, iria chorar.
O rapaz começou a andar. Ela queria gritar: "Não chegue perto de mim", mas a frase ficou presa. Ele, porém, apenas pegou o copo da sua mão e cheirou, franzindo o nariz.
— O que foi que você colocou aqui? É muito forte pra uma pessoa que precisa estar sóbria e lidar com crianças autistas no consultório de manhã.
O copo foi puxado de volta.
— Não pedi nenhum conselho seu.
Apesar disso, deixou a bebida em cima do piano novamente.
Queria tocá-lo e era recíproco, mas nenhum dos dois faria isso. Escutaram a respiração um do outro por alguns segundos. Ele a olhava, mas ela não conseguiu fazer o mesmo e permaneceu de cabeça baixa, com os braços cruzados.
Por fim, o amigo (ou namorado?) suspirou e deu alguns passos para trás. Ela mordeu os lábios com força para segurar as lágrimas. Sabia que ele deveria ir embora, mas não conseguia ver.
— Você não tem mais nada pra fazer aqui — murmurou por fim e, demonstrando toda a sua fraqueza, andou rapidamente até o quarto e fechou a porta, deixando-o sozinho no outro cômodo.
Contrariando as expectativas, ele não saiu. Apenas encostou-se na parede mais próxima e se sentou no chão, massageando a nuca.
Encarou o sofá. Sabia que não era atrativo tirar toda a bagunça para deitar, mas parecia que era sua melhor opção. Não se importava com as expectativas dela do que deveria ou não fazer.
Estaria lá quando ela acordasse.
Mais sobre o projeto aqui.
Aubade: Canção de amor matinal (em oposição à serenata, que é noturna), canção ou poema sobre amantes que se separam ao amanhecer. Canção instrumental que evoca a aurora.

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